Von Julia Guimarães
06.03.2015 / teatrojornal.com
Quem acompanhou a temporada do espetáculo Remote SP, apresentado nos arredores do Sesc Belenzinho há pouco mais de um ano, teve uma amostra dos inventivos dispositivos cênicos que o coletivo suíço-alemão Rimini Protokoll costuma criar para suas obras.
A partir de instruções transmitidas por fones de ouvido, os espectadores percorriam diversos espaços da cidade – como um cemitério ou a Praça da Sé – e ressignificavam a paisagem urbana através do que ouviam. Da equação entre som, espaço e deambulação nascia a intervenção teatral.
É também através de tecnologias sonoras e visuais que se constrói um dos mais recentes espetáculos do grupo, Situation rooms (2013), que atualmente circula pela Europa e foi visto no Teatro Nanterre-Amandiers, em Nanterre (França), no início de fevereiro. Concebida pelo trio que compõe o Rimini Protokoll – Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel –, a nova obra ainda não tem previsão de se apresentar no Brasil.
Neste trabalho, o uso de dispositivos cênicos para inserir a vida cotidiana no teatro permanece como fio condutor da encenação; aqui, porém, o formato site specific – presente em Remote SP – cede lugar a uma abordagem mais documental.
A encenação acontece dentro de uma casa cenográfica, por onde o grupo de espectadores circula. Antes de adentrar o espaço, recebemos fones de ouvido e monitores individuais. É por meio desses dispositivos que temos acesso ao relato de pessoas de origens diversas – como Síria, África, Israel, Alemanha e Índia – reunidas na criação por terem suas biografias de algum modo atravessadas pela presença de armas.
Escutamos, por exemplo, um jovem soldado israelense relatar sua rotina na base militar instalada na faixa de Gaza; ou uma ativista alemã que denuncia e critica o financiamento de armas por parte de um banco de seu país.
No entanto, ao contrário de outros espetáculos do Rimini Protokoll, em Situation rooms os depoentes (batizados pelo grupo como “especialistas do cotidiano”) não estão fisicamente presentes, tampouco suas imagens são reproduzidas em vídeo. O que os monitores reproduzem são seus ângulos de visão, extraídos dos mesmos espaços ocupados pelo público durante a encenação, construídos como réplicas dos ambientes descritos nos depoimentos.
A partir desse dispositivo, a missão do público é recriar as ações dos depoentes nos espaços do cenário, de modo a sincronizar pontos de vista. A ideia é que os monitores reproduzam sempre o mesmo lugar que o espectador enxerga diante de si, sob o mesmo ângulo. Assim, na medida em que a tela mostra uma porta se abrindo, o espectador deve também abrir a porta do cenário, de modo a corporificar o que os especialistas narram em off.
Nas entrelinhas dessa estratégia cênica está a proposta de colocar o público fisicamente no lugar do outro. Através dessa dinâmica performativa, vivenciamos com nossos corpos a vida rotineira dessas pessoas: escondemos debaixo da mesa de uma escola no Sudão do Sul para nos proteger de um tiroteio; visitamos um cemitério no México para conhecer os túmulos de pessoas assassinadas por um traficante mexicano; consultamos um paciente ferido em uma base da ONG Médicos sem Fronteiras na África. Assim, nosso contato com uma série de situações vinculadas à presença de armas no mundo é experimentado de maneira tátil.
Através do dispositivo construído pelo grupo, é possível pensar o espetáculo em diálogo com as dimensões de alteridade que ele constrói. Para além da sua esfera mais visível – a de proporcionar uma conexão corporal entre espectadores e “especialistas” – essa dimensão aparece também na escolha de agrupar pessoas com origens e visões de mundo distintas, por vezes opostas, sem, no entanto, criar um juízo moral prévio sobre elas.
Nesse sentido, é compreensível a opção por uma linguagem que se vale de presenças virtuais: parece ser o modo encontrado para viabilizar a reunião de pessoas geograficamente distantes em um mesmo espaço cênico, através de recursos que exploram de forma original seus “efeitos de presença”, ao materializá-la nos corpos dos espectadores. E é justamente ao propor esse agrupamento que o espetáculo consegue projetar a dimensão global e sistêmica que o comércio bélico possui no mundo atual.
Por outro lado, ao mostrar de tantas maneiras, diretas ou indiretas, como a presença de armas afeta o cotidiano de milhares de pessoas, Situation Rooms nos dá a medida da complexidade do problema. Nesse ponto, vale destacar também a importante função do tratamento documental dado ao assunto: ao fornecer informações sobre os mecanismos de funcionamento de uma indústria pouco transparente em suas ações, evidencia os interesses econômicos que atropelam diariamente os direitos humanos mais elementares.
Ainda assim, essa constatação não surge atrelada a um julgamento moral; em momento algum os criadores de apontam o dedo para culpados e vítimas. Mais do que denunciar, parece interessar ao Rimini Protokoll, sobretudo, o entendimento da lógica de pensamento por trás das ações dos diversos agentes ligados ao universo das armas, sejam eles banqueiros, fotógrafos de guerra, hackers, políticos, refugiados ou ativistas.
Assim, a potência crítica do trabalho surge da comunhão de dois fatores: pela escolha de tratar o assunto numa estrutura de quebra-cabeça, em que a diversidade de olhares colabora para um entendimento globalizado e complexo da questão; e por proporcionar que o público se conecte aos depoimentos não apenas com os sentidos da escuta e da visão, mas com todo o corpo.
Dessa forma, Situation rooms cria lampejos de entendimento tátil sobre o impacto avassalador das armas no mundo atual e colabora para atribuir, por meio de recursos cênicos, uma dimensão humanitária e vivencial ao problema.