Von Verônica Gonçalves Veloso
05.09.2013 / sala preta
Experimento, nesse texto, a análise concisa de três obras que acabei de presenciar no Festival de Avignon 2013, na França: Remote Avignon, de Stefan Kaegi, La porte du non-retour, de Philippe Ducros e Exhibit B, de Brett Bailey. Procuro descrever fragmentos dessas obras, destacando características passíveis de serem tomadas como princípios operadores da ação, que futuramente servirão de mote para a criação de novas ações artísticas. Optei por nomear tais práticas de ações artísticas, termo que abarcaria diferentes modalidades cênicas de caráter híbrido, possíveis de serem realizadas por toda e qualquer pessoa, que colocam o espectador como sujeito da experiência. Ileana Caballero, no livro Cenários Liminares: teatralidades, performances e política utiliza o termo ação artística para se referir a algumas práticas que ultrapassam os limites do teatral e exploram recursos da performance, do ativismo e da arte-ação.
Caballero opta pelo termo ‘práticas cênicas’, utilizado por Julia Kristeva, para se referir ao conjunto de modalidades cênicas que não representam nem partem de um texto dramático prévio, com caráter processual, temporal e não-objetual. Tais práticas se configuram como escrituras cênicas e performances experimentais que se abrem para um território não teatral. Na esteira apresentada por Richard Martel, no livro Art-Action, trata-se de pensar a arte como ação que propõe situações de convivência entre cidadãos, e deles com o espaço. Não se trata de proposições cênicas ou criação de encenações para serem apreciadas pelo público, mas de proposições artísticas ao alcance de todos, inclusive os não-artistas, que visem despertar um olhar estranhado para nossa relação com a cidade e com seu modo de operar. Há, portanto, um deslocamento de interesse dos procedimentos de criação cênica para procedimentos de ação para o espectador. A operação cênica é entendida como operação no imaginário, que se desloca da observação para a colocação em situação, do ator para o espectador, da fruição de uma obra para a criação conjunta, imaginária e pessoal.
Passo aos exemplos. O primeiro deles, “Remote Avignon”, é um audiotour criado por Stefan Kaegi, membro do coletivo alemão Rimini Protokoll, junto a uma equipe de dramaturgos, desenhistas de som e produtores. Trata-se de um percurso de duas horas realizado na cidade de Avignon, no qual cinquenta pessoas, munidas de fones de ouvidos, recebem comandos que orientam seu deslocamento, suas ações e seu olhar. O trajeto iniciava-se no cemitério, passava por um estacionamento, um supermercado, adentrava os muros da cidade, percorria os corredores e pátios da Universidade, ruelas escondidas, ruas movimentadas, praças, o interior de uma igreja e de um teatro. A princípio uma voz feminina conduzia os participantes, uma voz sem corpo, que emprestava o corpo do público para perambular pela cidade. Essa voz não pertencia a uma mulher real, mas a um software: era uma voz produzida por um computador, embora falasse bem perto de nossos ouvidos. Era uma voz que vinha do futuro, do tempo em que as máquinas terão substituído os homens, e que pretendia nos conectar com o passado e nos fazer viver intensamente o presente.
A questão temporal está presente desde o nome do audiotour, Remote Avignon, até os assuntos sugeridos pelo áudio. Remote remete a tudo o que é remoto, passado, a começar pela cidade antiga, cercada de muralhas; e também ao controle remoto, dispositivo associado às inovações tecnológicas. Além de veicular o texto, falado inicialmente por Margot (voz feminina) e posteriormente por Bruno (voz masculina que substitui Margot em certo momento do percurso), o áudio incorporava sonoridades ambientes que nos faziam olhar ao redor em busca das fontes sonoras, aparentemente tão reais, que nos envolviam. Exemplos disso eram os sons de uma bola quicando dentro de um pátio da universidade aliados às vozes de jogadores ausentes do espaço real. Uma multidão que aplaudia o trajeto do público na saída da universidade e uma legião de manifestantes que rodeava os participantes que recebiam o comando para ocupar uma rua, com atitude de reivindicação, eram outros aspectos desse ambiente sonoro.
O fator mais curioso dessa experiência foi constatar a ausência de atores e artistas em geral na condução do processo, seguindo o modelo bastante explorado por Janet Cardiff. Nem mesmo a voz que conduzia os participantes possuía algum resquício de aura artística. Junto a isso, a ausência da obra como objeto concreto também pode ser motivo de discussão, uma vez que não existe texto prévio e o roteiro gravado não se sustenta a posteriori, ou seja, não faria nenhum sentido lê-lo como dramaturgia ou reencená-lo. De nada serve o texto sem a visão da cidade e a visão da cidade sem a presença dos fones, com as vozes e os ruídos proferidos em nossos ouvidos, pode não se configurar como experiência artística. Os fones e o transmissor do áudio reproduzem um texto preparado especificamente para o recorte da cidade que se observou. Nesse sentido, trata-se de um site specific. De acordo com entrevista concedida por Stefan Kaegi à imprensa associada ao Festival de Avignon, há uma criação dramatúrgica específica para cada cidade que recebe o audiotour, ainda que os princípios trabalhados permaneçam os mesmos.
Diante da ausência de atores, a cidade assume lugar de destaque, juntamente com o imaginário dos espectadores, espaço onde se dá a operação artística. De fato, nada está acontecendo de excepcional, já que o evento se restringe à presença de cinquenta pessoas deslocando-se em bando pela cidade, permitindo que seus olhares e sentidos sejam alterados pelas provocações sonoras. O coletivo de pessoas munidas de fones de ouvido, passando por uma operação direta em seus olhares, desperta a atenção dos passantes. Ao direcionar nosso olhar, o áudio convida cada espectador individualmente a um exercício de semiotização, realizado a seu modo, a partir do seu manancial de referências, na construção de suas próprias narrativas que podem enredar esse ou aquele passante e imaginar algo a respeito de outro espectador.
A matéria sonora, as técnicas de gravação e de transmissão de áudio desempenham um papel pelo menos tão importante quanto o visual, mas levanta questionamentos específicos. O porte do fone de ouvido engendra um paradoxo evidente: enquanto a escuta teatral é tradicionalmente coletiva – o público aparece como o “grande ressonador” no fenômeno de co-presença cena-sala -, os fones geram uma experiência privada, que fecha o ouvinte em si mesmo e o isola dos seus semelhantes, provocando de fato uma dissolução do coletivo formado pela sala (KAPELUSZ, 2013, p. 125).
O audiotour joga com a realidade, criando efeitos ficcionais apenas imaginários, como por exemplo, os sons de pessoas e objetos que não estão presentes concretamente. Não sabemos o que cada um imagina, dentre as cinquenta pessoas do público, quando o áudio sugere que fabulemos a respeito do que pode estar acontecendo, naquele exato momento, atrás da janela de uma casa situada em uma ruazinha de Avignon, por onde só passaríamos caso nos perdêssemos procurando algum outro endereço na cidade. Diante do movimento criativo realizado pelo público, não cabe ao artista criar visões. Ele não opera no nível da encenação, realizando uma mise en scène, dispondo elementos em cena; opera no nível do mise en jeu, pois convida os participantes a um jogo de ressignificação, a uma invenção individual e coletiva ao mesmo tempo, operada por eles e não pelo ator. O artista não organiza um quadro para representar algo, não cria imagens, mas propõe um modo de olhar e operar, destacando aspectos significativos do percurso que traçou. Nesse sentido, pode-se dizer que Remote Avignon é o roteiro de um viajante que já esteve naquele lugar e que o espectador optou por repetir, como se fosse possível refazer a viagem de alguém e compartilhá-la.
Esse exemplo enfatiza as reflexões de Josette Féral a respeito da teatralidade. A pesquisadora entende a teatralidade como um ato de transformação do real, do sujeito, do corpo, do espaço, do tempo. Nesse sentido, ela afirma que a noção de “teatralidade ultrapassa o fenômeno estritamente teatral e pode ser identificada tanto em outras formas artísticas (...) quanto no cotidiano”, dependendo daquele que olha, enquadra e semiotiza a realidade (FÉRAL, 2011, p.102).
O que Stefan Kaegi propõe ao público é um exercício semiótico, uma prática que poderá ser adotada ou identificada posteriormente pelos espectadores. Na ausência do teatro propriamente dito, o que impera, nesse caso, é a teatralidade percebida pelo espectador. Partindo da prática cotidiana contemporânea de caminhar por espaços urbanos portando fones de ouvidos e diskmans, hoje substituídos pelos próprios telefones celulares, o público assume o papel de autor e ator.
A teatralidade, como a mimese, tem a ver fundamentalmente com o olhar do espectador. Esse olhar identifica, reconhece, cria o espaço potencial no qual a teatralidade poderá ser identificada. Ele reconhece esse espaço outro, espaço do outro onde a ficção pode emergir. Esse olhar é sempre duplo. Ele vê o real e a ficção, o produto e o processo. Como dissemos anteriormente, a teatralidade pertence sobretudo e antes de tudo ao espectador (FÉRAL, 2011, p.102.)
O segundo exemplo que gostaria de evocar é La porte du non-retour, de Philippe Ducros, dramaturgo da companhia canadense Hôtel-Motel. Trata-se de uma exposição de fotografias para ser contemplada enquanto se ouve um áudio veiculado em fones de ouvidos. As fotografias retratam a viagem de um estrangeiro à República Democrática do Congo. O autor percorreu o oeste da África até chegar à Etiópia, na experiência de imersão em um contexto de extremo conflito, que o levou a discorrer sobre migrações. O olhar que captou as imagens era de alguém em deslocamento, não habituado ao que via, e que estranhava os cheiros, os sons e a lógica do lugar. Nada lhe parecia familiar. O texto murmurado em nossos ouvidos foi escrito pelo mesmo viajante solitário que produziu as fotografias. Nessa condição, o viajante se voltava para si mesmo, tecendo um monólogo que incluía sua voz e a da mulher que o esperava e de quem ele progressivamente se afastava.
(...)